Noite Partida


Idarci Esteves

Com os braços ainda doídos pelo jeito e tempo que ficaram amarrados, Raimundinho empurrou para trás a porta da cozinha, que fora arrombada a chutes. A fechadura balançava pendurada. Saiu para o terreiro. Viu que a barra do dia estava chegando devagarinho lá pelos lados do açude do Tambor. Galos começavam a cantar nas vizinhanças. Caminhou até a cerca de arame da divisa de sua casa com a sede do sítio, voltou passando as mãos na cabeça, no rosto, e fechando os olhos. Difícil acreditar. De onde estava, ouvia o choro só de soluços de sua mulher, Ana.

— Raimundinho! — chamou Ana. — estou com medo deles voltarem.

Entrou em casa e encontrou a mulher encolhida no canto da cama do casal. Olhou para ela com ternura ainda não conhecida. Alisou seus cabelos, sentou na beira da cama perto dela e falou sem muito pensar, como que desamarrando as palavras.

— Quando der oito horas nós vamos pra cidade procurar a polícia e contar tudo o que aconteceu aqui. Quem sabe, ainda têm tempo de pegar os ladrões com nossas coisas antes deles venderem tudo.

O corpo de Ana estava frio e imóvel. Difícil encarar o acontecido. Ela nada respondeu.

— Depois, vamos procurar o Seu Gardel, avisar pra ele o que aconteceu no sítio. Ele precisa ver se sumiu alguma rês. Eles podem ter levado algumas também e mais algum trem aqui da roça.

Raimundinho começou a chorar manso, com as lágrimas só escorrendo pelo rosto. Saiu do quarto deixando Ana com seus medos, na cozinha pegou no chão as cordas do varal de roupas que os bandidos usaram para amarrá-los.

Quando o Sol começou a esquentar o terreiro, o casal tomou o rumo da rodovia, sem nenhum dinheiro, dispostos a caminhar até a cidade. Tinham percorrido um longo trecho da estrada quando alguém passou por eles e deu-lhes carona até à Delegacia de Polícia. Nunca estiveram com a polícia antes.

— O que o senhor deseja? — perguntou um soldado de plantão.

— Eu vim falar de um roubo que aconteceu na minha casa esta noite.

— Roubo? O senhor viu quem era?

— Nós vimos — respondeu ele buscando com os olhos o apoio da mulher.

Vou encaminhar vocês para uma pessoa receber a queixa.

Em uma salinha, a Cabo Solange interrompeu um telefonema e com os olhos indicou-lhes onde sentar. O computador estava à sua frente e uma xícara cheia de café, ainda por tomar, mostrava para o casal que o dia estava começando.

— Bom dia. Em que posso servi-los? — perguntou.

— Excelência, entraram ladrões em nossa casa esta noite.

— Está bem. Para a polícia apurar a infração é preciso lavrar um Boletim de Ocorrência. Vou anotar tudo que vocês se lembram sobre o roubo. Vou precisar de alguns dados seus, nomes completos e endereço de residência.

— Raimundo Rosário Freitas, sou mais conhecido como Raimundinho. Ela é minha mulher, Ana Carvalho. Nós casamos tem só três meses. Consegui trabalho no sítio do Pedregulho, de Seu Gardel, aqui em Campo Maior, tem só um mês.

— Ah, é? Descreva os fatos. A que horas aconteceu, consegue ter uma ideia?

— Não sei dizer ao certo, mas era bem tarde. Nós assistimos um programa na televisão e depois fomos dormir. Acordamos com o barulho na porta da cozinha. Eu levantei pra ver o que era e já me deparei com três homens dentro da casa. Um deles falava manso pra eu ficar quieto e não reagir; um outro, ruivo e baixo, é que gritava muito e foi pro quarto onde a Ana estava. Trouxe ela pra cozinha, mandou a gente sentar nas cadeiras, virar os braços pra trás do corpo e amarrou nossas mãos com as cordinhas do varal que ele já tinha pegado no terreiro. E ali nós ficamos enquanto eles tiravam da casa tudo que nós tínhamos.

— Machucaram vocês? Estavam armados?

— Não machucaram, só nos amarraram. O que ficava de vigia no terreiro, perto da porta da cozinha, estava armado com revólver e ameaçava usar se a gente gritasse por socorro. Um outro dentro da casa estava sério, nem calmo nem nervoso. Parecia gente com estudo porque falava as palavras certinhas.

— Havia outros moradores perto? Alguém mais viu o roubo?

— Ao lado, quase pegado na minha casa, tem uma estradinha de terra pra passagem de carro. O movimento é pequeno porque tem poucas moradias mais adiante. Não sei se mais alguém viu o roubo.

— Levaram o que de sua casa?

— Tudo, deixaram a casa limpa. Levaram a televisão, fogão a gás, o micro-ondas, os celulares meu e dela. Estenderam no chão a toalha que cobria a mesa da cozinha e puseram nela os garfos, facas, colheres, duas panelas e a panela de pressão que ganhamos no casamento. No quarto, abriram o armário e pegaram as minhas roupas e as da mulher, roupas de cama, tudo; nas gavetas, o que servia eles levaram, o resto jogaram no chão e pisaram em cima na pressa do assalto. Encontraram oitocentos reais que nós economizamos pra pagar as prestações da cama e colchão e levaram também. A senhora acredita que até minha loção de barba eles levaram? Era o meu luxo.

— Mas, — ponderou a Cabo — para levar tudo isso, eles precisavam de uma condução. Podia ser uma caminhonete ou um caminhão pequeno. Vocês não acordaram com o barulho de algum carro?

— A lida na roça cansa muito o corpo. Quando a gente deita pra dormir, parece até a morte, não ouve nada, só acorda às cinco horas da madrugada pra começar outro dia de trabalho.

— Está bem. Perguntei porque preciso lavrar um Boletim de Ocorrência bem completo para dar início às investigações. Vocês foram amarrados, quem os soltou? Pediram socorro?

— Nós mesmos. A cordinha de varal é feita de náilon, desliza mais fácil. Levamos um tempo pra isso. E agora? — perguntou aflito. — A Polícia vai procurar esses homens antes deles darem fim nos nossos trens? Nada ali foi ganhado, tudo comprado com nosso trabalho. Só a panela de pressão foi presente de casamento.

— Olha, a polícia faz diligências constantes aqui em Campo Maior e nas cidades vizinhas, porque o número de roubos na área rural tem aumentado muito. Nós trabalhamos com informações que recebemos e com a união entre as polícias militares de outras cidades, mas até agora, sabemos pouco a respeito desse e de outros bandos que estão agindo por aqui. Sinto muito falar isso para vocês.

— A senhora quer dizer que é quase nada a esperança da gente reaver o que foi roubado? — perguntou Ana.

— As possibilidades sempre existem, mas demoram um tempo... — respondeu sem olhar diretamente para ela. — A Polícia tem-se empenhado muito para pegar esses bandidos.

Nessa hora, Raimundinho arqueou o corpo pra frente em direção aos joelhos como se tivesse perdido as forças e a coragem.

— Excelência, tenho um oco dentro de mim. Não roubaram só as nossas coisas, levaram também a confiança no poder da polícia de dar segurança e proteger nossas coisas. Já sei. Vamos ficar só com a lembrança dessa noite partida.

voltar

Idarci E. Lasmar

E-mail: idesteves@terra.com.br

Clique aqui para seguir esta escritora


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose